Fonte: 7 Margens. Texto: Cátia Tuna
José Carlos Carvalho (1969-2024)
Foi há pouco mais de um mês que o professor José Carlos da Silva Carvalho «mergulhou na vida invisível» (expressão do professor Jorge Teixeira da Cunha num artigo da Voz Portucalense). Partiu aos 55 anos. Nos primeiros tempos como docente, os seus alunos na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (polo do Porto) chamavam-lhe o «puto maravilha» por articular a sua juventude com um brilho intelectual salutar e ainda por se mover com inusitada competência em vários âmbitos, para além da área bíblica na qual se especializou. O seu percurso é de grande singularidade no panorama da Igreja Católica portuguesa. Era um jovem leigo de 18 anos quando entrou na Faculdade de Teologia. Acabou por estar dois anos no Seminário durante a licenciatura. Mais tarde casou e teve dois filhos. Concluiu o doutoramento em Teologia Bíblica na mesma Faculdade onde se licenciou com uma tese sobre o capítulo 18 do Apocalipse. Estudou no Pontifício Instituto Bíblico em Roma onde fez a Licenciatura Canónica em Exegese Bíblica. A sua tese, mas também a sua atividade recente de investigação, são abordadas neste testemunho.
O seu percurso de estudo e, mais tarde de docência, cruzou-se com o de alguns companheiros. É o caso do padre e professor Adélio Abreu (docente da Faculdade Teologia, membro da sua direção e cónego da diocese do Porto) que sobre ele refere:
«Falar do José Carlos Carvalho é dar testemunho de um amigo que conheci no Seminário Maior do Porto e na Faculdade de Teologia onde fomos alunos, mas que pude apreciar melhor já como docentes na mesma Faculdade durante cerca de duas décadas. Aliava a simplicidade no trato e a dedicação extrema e inadiável à Faculdade e aos alunos, à competência no estudo e no ensino exigente da Bíblia, dando sentido a uma generosidade que lhe era espontânea. Só não terá feito mais porque não terá sido preciso, mesmo quando a doença lhe bateu à porta.»
Outro amigo foi o professor Alexandre Freire Duarte (também docente da mesma Faculdade) que dá o seguinte testemunho:
«Pessoa disponível até ao seu desgaste, não no cumprir de um dever, mas de um amar, o professor José Carlos era daqueles raros seres humanos para quem o sim era sim e o não era não, tal como nos pediu Aquele em Quem ele vivia há muito.»
A Faculdade de Teologia acabou por ser para si uma casa onde se formou e mais tarde formou gerações de alunos. Ali era apreciado por todas as pessoas, inclusivamente pelos alunos, embora fosse muito exigente com eles. O biblista Luís Castro (sacerdote da Sociedade Missionária da Boa Nova e professor na Faculdade de Teologia) foi seu aluno e mais tarde seu colega:
«Conheci o Doutor José Carlos no meu último ano de teologia, acabado de chegar de Roma, com quem ainda tive a felicidade de frequentar um seu seminário bíblico. A vida permitiu, depois, reencontros compassados, que foram estreitando laços de amizade: por volta do ano 2000, no Maputo, onde me encontrava como missionário, quando ele ali veio leccionar no Seminário Teológico Interdiocesano S. Pio X; em Roma, logo a seguir ao seu casamento; na Faculdade de Teologia, no Porto; enquanto director da Revista “Igreja e Missão”. Dele recordo o amigo, sempre presente com interesse genuíno e oportunos conselhos sinceros. Bem-haja!»
A Teologia deve ser «aberta e arejada», afirmou numa entrevista recente; noutra entrevista de 2022 à Agência Ecclesia é possível ter acesso ao seu conhecimento bíblico lúcido e quase entusiasta.
José Carlos Carvalho manteve-se sempre ligado à paróquia Senhora da Conceição (conhecida como a paróquia do Marquês) no Porto, onde foi acólito, catequista durante mais de 30 anos e membro da comunidade Fé e Luz durante mais de 25 anos. Este é um movimento comunitário em torno da pessoa com deficiência intelectual. Vítor, um amigo especial pertencente a esta comunidade, dá o seu testemunho sobre o professor José Carlos:
«O Zé Carlos meteu-me na catequese, era boa pessoa e muito amigo dos outros. Foi um amigo mesmo muito especial para mim. Tenho saudades dele. Ele não podia estar nos últimos encontros e eu rezava sempre por ele. Está guardado no meu coração. Sempre foi amigo de toda a gente, aliás foi meu padrinho de crisma. Foi uma pessoa extremamente importante. Lembro-me que ele perguntava sempre pela minha mãe e pelo meu pai, como estava tudo em casa. Foi muito importante para mim.»
Mário, que é o pai de Rosarinho, outra «amiga especial» do Fé e Luz, salienta a sua humildade:
«A primeira vez que o conheci chamei-lhe doutor e ele disse “não me insulte porque eu sou o Zé Carlos”. Quando ele veio a Vila das Aves, acolitou na nossa missa e depois eu é que disse ao meu padre quem ele era, porque ele apenas se tinha identificado como “Zé Carlos” e não disse que era doutorado e professor na Católica. Uma pessoa tão simples, tão fantástica.»
Este texto termina como terminou a ação de graças que a comunidade Fé e Luz da paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Porto realizou pela vida do José Carlos, na eucaristia de sétimo dia:
«[…] a sua profundidade tocava-nos a todos, sem exceção e, nos nossos corações, a Palavra encarnava e dava significado às nossas vidas. Mas, para além das suas palavras, fica a fecundidade dos seus gestos, do seu cuidado, da sua preocupação constante por todos, em verdadeira comunhão com as nossas alegrias e as nossas tristezas.
Agradecemos, pois, a Deus este milagre que foi ter-te posto na nossa comunidade e nas nossas vidas e, agora, que contemplas, sem véus, a Beleza plena do Seu Rosto, queremos cantar aquele cântico de que tanto gostavas e que tantas vezes pedias que cantássemos:
Belo, Belo, Jesus é Belo,
E Jesus faz bela a minha Vida.
Embala-me, toca-me, desperta o meu olhar,
E Jesus faz bela a minha Vida.»
Cátia Tuna é professora na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa e investigadora no Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR-UCP). A sua investigação no doutoramento foi sobre a dimensão religiosa no fado antigo.
